Um ano depois do massacre de 10
trabalhadores rurais no Pará, ato em homenagem às vítimas revela abandono e
trauma. Não se sabe quem são os mandantes do crime, famílias seguem sem
indenização e assentamento não foi regularizado
Depois de participar da cerimônia para
marcar um ano da morte de 10 trabalhadores rurais em Pau D’Arco, no Pará, a
pequena Gabi, de 7 anos, lamenta que não poderia comemorar o seu aniversário.
“Acho que nunca mais vou comer bolo”, disse. Ela faz anos no dia 24 de maio,
data em que perdeu o pai, Ronaldo Pereira, o Lico.
Seu irmão, Davi, de 4 anos, se assusta
ao escutar o barulho de uma ambulância na saída da cerimônia. Pensa que é uma
viatura policial e pergunta: “Quem a polícia vai matar agora?”.
Há um ano, policiais civis e militares
foram até a fazenda Santa Lúcia, com o argumento de estarem cumprindo mandados
de prisão contra posseiros. Assassinaram 10 trabalhadores rurais sem-terra,
entre eles o pai de Gabi e Davi.
Faz calor em Redenção, onde Lico e
outras sete vítimas foram sepultados, distante 25 quilômetros de Pau D’Arco.
Como é corriqueiro no Sul do Pará, a temperatura está acima de 30°C mesmo no
outono. Passado um ano da maior chacina no campo desde 1996, algumas velas
foram acesas no cemitério e os familiares se reúnem para homenagear os
trabalhadores.
Em Pau D’Arco, onde duas vítimas estão
sepultadas, uma singela homenagem também acontece no cemitério. O ato tem
poucas pessoas. Em contraste à cobertura do enterro, dessa vez o jornalista da
Repórter Brasil é o único membro da imprensa. Não há, tampouco, mausoléus. As
covas são identificadas por uma cruz de madeira cravada na terra vermelha.
A sensação entre os sobreviventes e
familiares das vítimas é de abandono. Não receberam indenizações do estado
pelos parentes assassinados, não conseguiram ser assentados e os advogados que
participam do caso recebem ameaças constantes.
Na última quinta-feira, a chacina
executada por policiais militares e civis completou um ano sem que se conheça
os mandantes do crime. O inquérito aponta para execução sumária das vítimas.
Embora os policiais tenham alegado que teriam reagido a tiros, essa versão
inicial foi contestada por dois policiais civis, por sobreviventes e pela
perícia técnica.
A Polícia Federal é responsável pela
investigação para encontrar os mandantes. Em 3 de maio, semanas antes do
aniversário de um ano, foi realizada uma operação para apreender celulares e
documentos de 11 pessoas suspeitas de terem conhecimento do plano para a
chacina. Entre eles, três membros da família Babinski, proprietários da fazenda
ocupada. Honorato Babinski Filho, Amanda Patrícia Resplande Babinski e Maria
Inês Resplande de Carvalho tiveram documentos e celulares apreendidos pela
Polícia Federal.
O então superintendente da Polícia
Civil para o Sul do Pará, Antônio Gomes de Miranda Neto, o Miranda, e o
ex-advogado da família Babinski, Ricardo Henrique Queiroz de Oliveira, também
tiveram celulares e documentos apreendidos na mesma operação.
Procurado pela Repórter Brasil, o
ex-advogado da família Babinski, Ricardo Oliveira, considerou desnecessária a
ação da Polícia Federal: “Tanto eu quanto a família Babinski nos
disponibilizamos para ajudar no que fosse preciso para descobrir a verdade.
Nossos sigilos bancários e telefônicos já haviam sido quebrados. Nenhum indício
foi verificado”. Ele afirma, porém, que não tem nenhuma participação no caso e
diz que teve o celular apreendido apenas porque foi advogado dos Babinski no
pedido de reintegração de posse. A atual advogada da família, Olga Moreira, não
respondeu aos pedidos de entrevista.
Os onze policiais militares que
participaram da ação foram indiciados pela Corregedoria da Polícia Militar e
estão presos. O inquérito foi encaminhado para a Justiça Militar e o parecer do
Ministério Público foi para o Tribunal do Júri, da Justiça Comum.
Movimentos sociais e trabalhadores
rurais sem-terra fecharam em 21 de maio deste ano a BR 155, no Sul do Pará,
para pedir a transferência do policial civil Miranda, que é investigado no caso
e também teve o celular apreendido. Movimentos sociais, como a Federação dos
Trabalhadores e Trabalhadores da Agricultura Familiar do Sul do Pará, acusam o
policial de perseguição.
Após a manifestação dos trabalhadores
rurais, Miranda foi transferido para Superintendência Regional em Paragominas,
no Norte paraense, de acordo com a Polícia Civil do Pará. A transferência,
segundo afirma a assessoria de imprensa da corporação, não teve relação com a
chacina de Pau D’Arco e nem com o protesto.
Rotina de conflitos e ameaças
A fazenda Santa Lúcia, local da
chacina, voltou a ser ocupada e 190 famílias vivem lá aguardando a
desapropriação do terreno. O advogado das vítimas e sobreviventes, José Vargas
Júnior, explica que governo e os donos da fazenda chegaram a um acordo sobre o
valor da desapropriação: R$ 22,7 milhões. No entanto, o acerto depende de aval
do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o que ainda não
aconteceu.
De acordo com o Incra, a fazenda Santa
Lúcia é considerada produtiva e não pode ser desapropriada para reforma
agrária. Porém, como os proprietários concordaram em negociar o terreno, o
órgão está analisando a compra, ainda sem data para conclusão.
Há também um pedido de reintegração de
posse concedido pela justiça aos proprietários. “A mesma questão que gerou a
chacina permanece. Com essa sensação de permanente ameaça de que a qualquer
momento a polícia pode tentar desocupar a fazenda”, afirma o advogado.
Após o massacre — considerado o maior
desde 1996, quando foram assassinados 19 sem-terra em Eldorado dos Carajás — o
clima de tensão continua. Quarenta dias após a chacina, o líder do acampamento
Santa Lúcia, Rosenildo Pereira, foi morto com três tiros na cabeça. “A nossa
segurança é vulnerável, mas está indo. A segurança nossa é Deus”, afirma Manoel
Gomes Pereira, atual liderança do acampamento. Três pessoas ligadas ao caso
foram incluídas no Programa de Proteção de Vítimas e Testemunhas Ameaçadas de
Morte, de acordo com a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos.
“Alguns recebem uma ameaça maior,
principalmente, os que se expõem mais”, afirma o advogado Vargas. Diante de
ameaças, Vargas decidiu tirar sua família da cidade. Outro advogado, Rivelino
Zarpellon, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Xinguara, já
comunicou a Polícia Federal que também está sendo ameaçado. Zarpellon
participou da delação dos dois policiais civis que estavam na na chacina. Em
novembro, motoqueiros rondavam a sua casa. Por medida de proteção, ele chegou a
sair do estado por 60 dias.
O Pará é o estado mais violento do
país. Em 2017, ano mais violento no campo desde 2003, 71 lideranças foram
assassinadas no Brasil segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Do total, 22
deles, ou um terço, foram assassinados no Pará.
Vítimas sem assistência
O advogado José Vargas Júnior entende
que as vítimas estão expostas a uma violência que se perpetua. “Primeiro o
massacre, depois a criminalização das vítimas dizendo que morreram em
confronto, depois a entrega dos corpos em estado de decomposição e, agora, a
falta de assistência às vítimas”, relata o advogado.
A mãe de duas vítimas, segundo Vargas
Júnior, teve a depressão agravada, parou de reagir aos medicamentos e morreu
antes de receber a indenização pelo assassinato dos filhos por agentes do
estado. O advogado explica que a estratégia para conseguir as indenizações era
um acordo com o governo do Pará. Foram realizadas reuniões com o governador,
vice-governador e com representantes do governo. Mas, passado um ano, nada foi
decidido.
Em nota, o governo paraense afirma que,
para oferecer apoio às famílias, é preciso a conclusão do processo judicial.
“Entretanto, de forma antecipada, o Estado do Pará e a Defensoria Pública do
Estado vêm buscando instrumentos de conciliação para oferecer de forma mais
rápida apoio às famílias envolvidas no caso, para que não fiquem
desassistidas”, afirma o governo.
O advogado das famílias reclama que o
governo posterga a decisão e não oferece apoio simples, como ajuda psicológica
e cesta básica para as famílias que estão desassistidas.
Ele compara a morosidade do processo
judicial com o caso dos 19 trabalhadores sem-terra mortos em 1996 em
Eldorado dos Carajás. “As famílias só receberam a indenização depois de 10
anos”, afirma Vargas.
Um dos sobreviventes do massacre, Bento
Francisco de Oliveira, conseguiu escapar da chacina junto com a esposa, mesmo
baleado na coxa esquerda. “A minha situação financeira está complicada. Minha
perna sempre sangra e não tenho o controle dela”, diz. Ele lamenta não receber
apoio do estado e afirma que as cenas do massacre ainda o perseguem nos sonhos.
“Eu só queria minha saúde de volta e um pedaço de terra para poder trabalhar”.
Fonte: CONTAG
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