sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Educação e Direitos Humanos

 
Muitas correntes teóricas e filosóficas no campo da pedagogia, algumas das quais em momentos específicos tornaram-se dominantes, enfatizaram o papel homogeneizador da educação, estabelecendo um sinal de igualdade entre coesão social e harmonia por meio do aplacamento das diversidades sociais.

Por Jeosafá Fernandez*


Não foram nem são poucos, entretanto, os educadores a desconfiar dessa missão “homogeneizadora” e críticos dos mecanismos explícitos ou velados dessa “harmonia”, cujo ingrediente e fermento é a “disciplina”, no mais das vezes entendida como instrumento coercitivo, de mão única e de cima para baixo.

Eleita como objetivo final, a padronização de comportamentos põe a escola na difícil posição de instituição voltada para o esmaecimento das diversidades individuais e de grupos. A lógica por trás desse processo de aniquilamento de diferenças e eleição de igualdades redundantes é a de que as particularidades constituem desvios perniciosos cujo sufocamento contribui para o desenvolvimento cognitivo e moral dos indivíduos.

Estamos aqui no âmbito de um pensamento reducionista e monológico que, embora predomine no conjunto do sistema educacional, é incapaz de responder à realidade complexa dos dias atuais, na qual a escola está mergulhada e à qual não pode dar as costas sem pôr em risco sua própria existência enquanto instituição.

A suposta missão homogeneizadora da escola resvala invariavelmente para a standartização, para a padronização de comportamentos, condutas, processos, objetivos, linguagens, e se o emprego do uniforme escolar é elemento dessa lógica, está longe de ser o vilão de todo esse processo, embora sejamos tentados muitas vezes a elegê-lo como tal (a verdade é que o uniforme não é nem bom nem mau, mas está intimamente ligado à filosofia e ao projeto da instituição escolar, podendo refletir lógicas autoritárias ou democráticas).

De um ponto de vista conservador, que é o predominante hoje, a homogeneização, eleitos objetivos de ensino-aprendizagem de longo prazo, visa estabelecer linhas de exclusão de desempenho e de conduta escolares, para aquém das quais tudo é aceitável, desde que confirme a homogeneização, e para além das quais todo diferente é rejeitado e estigmatizado, desde uma simples nota de prova até um comportamento tido como inaceitável de um ponto de vista tido como absoluto.

A dificuldade de a escola trabalhar com o diferente evidencia-se por toda parte, e chega a ser constrangedora quando esbarra na legislação, que, por modernizar-se nos últimos anos, exige mecanismos de inclusão frente aos quais a instituição escolar mostra-se despreparada, perplexa, insuficiente e supreendentemente resistente.

Exemplo disso é a exigência de acessibilidade para deficientes físicos, em relação à qual sequer as escolas públicas brasileiras se pronunciaram efetivamente – e o prazo para adaptação arquitetônica expirou recentemente. Exemplo disso é também é a lei que institui o ensino de conteúdos de cultura africana e de afrodescendência no Ensino Básico, que no Estado de São Paulo necessitou de ação Ministério Público para chegar ao planejamento escolar – sob a ameça de punição aos gestores das unidades públicas e privadas, que sequer se tinham inteirado da lei – no Brasil, ao que parece, e estranhamente, a lei tem estado na vanguarda das transformações.

A harmonia, numa escola homogeneizadora, avessa à diversidade, precisa a todo custo ser alcançada. Isso porque qualquer desempenho aquém do esperado e qualquer comportamento identificado como desviante, no âmbito escolar, se afigura como ruído indesejado e elo defeituoso da cadeia linear de reprodução do saber.

Numa tal perspectiva, o diferente, seja de que natureza for, é aberração, anomalia e mácula do processo de ensino-aprendizagem a conspurcar, quando, de um ponto de vista mais problematizador é, sem sombra de dúvidas, elemento perturbador de uma paz estéril, a colocar em pânico o “coro dos contentes”, a evidenciar o quanto é estranha a própria existência de um continuum indiferenciado numa realidade altamente heterogênea.

Para legitimar essa missão homogeneizadora, cujo veículo é a harmonia conquistada a golpes de Regimento Interno e de ferramentas de “apoio” educacional reunidas sob o termo “disciplina”, a escola avessa à diversidade fantasia a possibilidade de se estabelecer como locus paradisíaco imune a conflitos e como instituição formadora de inteligência e moral, quando, ao rejeitar o diverso, na realidade, o que faz é reproduzir saberes, que só lhe chegam com anos de atraso, recalcar potencialidades no nascedouro, desperdiçar criatividades latentes e virar as costas com desprezo para o saber e a emoção que cada um traz dentro de si quando cruza o portão de entrada escolar.

As lógicas que regeram instituições, entre as quais a escola, durante os séculos XIX e XX foram invariavelmente hierárquicas e homogeneizadoras. Porém, se já para esses séculos essas lógicas revelaram suas insuficiências, que dizer de um mundo que busca a todo tempo articulações comunitárias em rede?

Em lógicas hierárquicas e homogeneizadoras, o elemento perde sua autonomia ao ingressar no conjunto, bem como sua existência para o – e no – conjunto só está garantida desde que a lógica da subordinação seja rigorosamente aceita e seguida. Noutras palavras, estão consubstanciadas fantasias ideológicas de mimetismos sociais, e abolidos por decreto conflitos incontornáveis, encarados no âmbito dessas lógicas como vícios a serem sanados.

Ora, desde que o conflito é inerente ao próprio sujeito, e sendo impossível que não haja conflitos de todas as naturezas, ordens e grandezas no interior de um grupo social, a negação dos conflitos é a própria negação dos grupos sociais e, em última instância, dos próprios sujeitos.

Se adotar um ponto de vista complexo para tratar da realidade igualmente complexa que a circunda e penetra, não resta outra coisa para a escola a fazer a não ser assumir a natureza conflituosa do processo de ensino-aprendizagem e acolher a diversidade em seu interior como elemento fecundante.

Isso não apenas no que tange a objetivos estritamente cognitivos, pois crianças e jovens não abandonam seu corpo físico em casa para ingressar nas dependências escolares – tampouco é possível que para atravessar o portão da escola se livrem de seu corpo psíquico, em que emoções e pensamentos borbulham e fervem ao menor estímulo, e menos ainda é provável que se demitam de seus grupos sociais a cada toque do sinal para entrada na sala de aula.

Sem dúvidas que, para uma instituição que lida muitas vezes com milhares de indivíduos, torna-se difícil encarar as muitas e complexas realidades que a compõem. Sem dúvidas que um corte reto, para além do qual ficam excluídas ou anuladas todas as diferenças, possibilita um processo de massa, em série, em escala, barato em muitos aspectos e eficaz em outros.
Porém, nesse instante não se está falando de escola, mas de fábrica, nos moldes dos séculos XIX e XX, com a qual a escola foi e ainda hoje majoritariamente é confundida.

No âmbito dessa confusão, diretores e superiores hierárquicos são elementos controladores de um processo baseado na reprodução a partir de modelos, professores são operários condicionados a certas ações (as aulas) propiciadas por ferramentas (as disciplinas ou “matérias”) com o objetivo de modelar a matéria prima (os alunos), que, ao cabo de um certo tempo, estão prontos para abastecer as prateleiras do mercado de trabalho. A metáfora da fábrica de salsichas já foi amplamente empregada para tratar do assunto, e Millôr Fernandes não terá sido o único a se socorrer dela.

Trabalhando com a complexidade e com a diversidade

Sucede que escola não é fábrica, professores não são operários e crianças e jovens não são matéria prima de salsichas simbólicas ou sociais. Afastado do horizonte escolar a busca fanática pela homogeneização de comportamentos e condutas e pela harmonia do silêncio a todo custo, o que se revela é a realidade complexa, conflitiva e, às vezes, aflitiva. E cabe à escola não maquiar a realidade, mas propor-se o desafio de compreendê-la e transformá-la, a partir da articulação de seus agentes e da mobilização de suas energias humanas.

Em busca de seus objetivos, a escola não necessita de anular diferenças e diversidades: bem ao contrário disso, para justificar sua existência no mundo contemporâneo, a escola precisa convocar as diferenças que, articuladas, são a farinha e o pão do processo de ensino-aprendizagem, diferenças que são na realidade expressões de identidades individuais e de grupos, existentes e vivas mesmo que a escola as reprima ou feche os olhos para elas.

O reconhecimento e o acolhimento das diversidades torna possível à escola, que nunca deixou de estar mergulhada nelas, se apresentar aos muitos agentes que a compõem, circundam e interpenetram, como espaço solidário de convergência, no qual os diversos segmentos têm a possibilidade de se articular a partir do debate democrático em torno de valores e com vistas a objetivos eleitos comunitariamente.

É uma ilusão acreditar que conflitos possam ser abolidos ou resolvidos sempre harmonicamente: conflitos precisam ser encarados democraticamente para que os agentes envolvidos se manifestem em busca de soluções efetivamente comunitárias, caso em que a harmonia se estabelece como resultado de um processo contraditório, desarmônico, e como acordo voluntário de convivência, em que há ganhos, mas também perdas, não como condição apriorística isenta de riscos.

A própria ação de reconhecer a existência e de identificar conflitos já é dolorosa – que dizer então da construção de um pacto de ensino-aprendizagem que assuma o conflito como motor de sua razão de ser.

Porém, que atitude melhor tomar: ignorar as diferenças, atribuir ao diferente a “culpa” pela diferença e penalizá-lo em favor de uma homogeneidade que não existe em parte alguma, ou admitir que todos somos diferentes e, de posse dessa constatação, buscar articulações solidárias e comuntárias, não hierárquicas, em busca de objetivos comuns?

Crianças e jovens são diferentes afetiva, biopsíquica, intelectual e socialmente, e, no interior da escola, compõem um grupo complexo, em que identidades e diferenças são igualmente elementos constituitivos, e ainda cujos interesses não coincidem inteiramente nem com os de outros segmentos da instituição, nem com os da instituição escolar tomada em seu conjunto. Por seu turno, o corpo docente é também composto de indivíduos dotados de particularidades e idiossincrasias.

Naturalmente que é mais difícil reconhecer a complexidade do corpo discente do que tomá-lo como um todo homogêneo e indiferenciado. Também é mais fácil tratar o corpo docente como um conjunto fundado na identidade de interesses e nada além disso. Mas então, nos dois casos, seria honesto admitir que se está na superfície das coisas, e que a rejeição das dimensões políticas e individuais dos membros desses dois segmentos escolares é um confisco de seus direitos, uma agressão à cidadania e um desserviço para com a democracia.

Quem é que não sabe que muitas das dificuldades do processo de ensino-aprendizagem residem em situações que pouco têm a ver com técnicas ou com práticas pedagógicas? Aliás, que prática de ensino restrita que dá conta conflitos cuja origem reside além dos muros da escola?

O estabelecimento de um verdadeiro pacto de ensino-aprendizagem só é possível encarados os indivíduos em sua complexidade de conflitos, que envolve cognição, afetividade, corpo biopsíquico e relações sociais.

Estabelecer objetivos bem como estratégias de ensino-aprendizagem ignorando-se a complexidade das diversidades constitui, além de lamentável desperdício de energias humanas, de subjetividade e de talentos, uma fantasia autoritária que, para se concretizar, sacrifica a humanidade verdadeira, diversa, plural, imperfeita, que sente dor e prazer, que se emociona e que despreza, que dá o melhor de si e que às vezes molhas as calças.

Em uma de suas conferências, um já idoso Sarte, acometido de incontinência urinária, teria solicitado licença à platéia, que o assistia interessada, para trocar as calças, se dirigindo a ela mais ou menos nos seguintes termos: “Desculpem o incômodo, mas, quando se é humano, é preciso ser humilde”. A diferença pode ser encarada como menosvalia, porém, pode ser encarada como particularidade. Pode ser tratada discriminatoriamente, ou pode ser celebrada como contribuição do indivíduo para com o todo.

Ao referir-se com dignidade ao incidente que expôs sua condição particular durante uma situação pública, Sartre chamou a atenção para o fato de que ele em nada ficara diminuído com o imprevisto, afinal a velhice tem suas próprias desvantagens, que bastam por si e não necessitam de outras além daquelas propiciadas pela natureza.

Os movimento gerais do mundo contemporâneo apontam para o acolhimento das diferenças como prática desejável de aprofundamento da democracia. Lembremos que crianças, idosos e mulheres já foram considerados seres humanos de segunda categoria, mercê de suas particularidades tidas como imperfeições. No Ocidente, negros e índios já foram considerados sem alma e judeus foram por muito tempo tratados como não-pessoas, pelas mesmas razões ou por razões presididas pelas mesmas lógicas.

A história é pródiga em relatos resultantes dessas formas de encarar outro, e não por acaso imediatamente após a Segunda Guerra a ONU é organizada e a Declaração Universal dos Direitos Humanos é redigida e assinada, como reconhecimento de que a diversidade deve ser respeitada. Se não for uma extrapolação impertinente, poder-se-ia mesmo dizer que a DUDH reflete a busca por um pensamento mais complexo aberto ao diverso e que, com as limitações do pós-Guerra, o acolhe com solidariedade.

Democracia, escola, complexidade e diversidade 

Assumir uma atitude democrática no campo das relações de ensino-aprendizagem exige que se ultrapassem os limites estritamente políticos implicados nessa postura, afinal, respeitar a opinião divergente de um adversário político é muito menos difícil do que se expor a uma manifestação inusitada de raiva de um indivíduo, cujas conseqüências podem transitar toda a escala de comportamentos, da indiferença ao homicídio ou ao suicídio.

A escola pode fazer de conta que é imune às particularidades, todavia o recalque dessas particularidades não as anula: apenas faz com que elas, reprimidas, se expressem de outras formas, em outros lugares e em tempos imprevisíveis. Ao dar de ombros para as particularidades, a escola perde uma excelente oportunidade de, acolhendo o diverso de cada um, pôr em movimento energias criativas imensas. Acolher o indivíduo, com todos as suas potencialidades e limites, é reconhecê-lo inteiro.

No pacto de ensino-aprendizagem estão implicados todos os seus agentes, com todas suas respectivas bagagens de esperanças e frustrações. Compartilhar essas bagagens permite o estabelecimento de relações sujeito-sujeito, relações que, quando recalcadas, redundam em embotamento da criatividade, frustração de energias emocionais, intelectuais e físicas de educadores e de educandos, sem maiores proveitos, com muito desgaste e com ainda mais perdas simbólicas e de horizontes individuais e coletivos.

Facilitar o processo de ensino-aprendizagem, numa perspectiva democrática e aberta à complexidade do mundo significa optar por um caminho trabalhoso de diálogo, de esforço de mútua compreensão, mas que tem como ganho inestimável a instauração de momentos e espaços de convivência solidária, cuja premissa é a sincera incorporação dos conflitos, assumidos como parte legítima desse mesmo processo contraditório, complexo, arriscado (para Clarice Lispector a vida não vale sem risco) mas fecundo e verdadeiro

Ao invés de aplacar os conflitos, entendidos como obstáculos a serem removidos para que sejam atingidos objetivos educacionais, o processo de ensino-aprendizagem voltado para a verdadeira constituição de valores democráticos deseja a manifestação deles, pois isso dá condições a que sejam desobstruídos mecanismos individuais e coletivos essenciais à produção do saber.

Encarar a realidade por meio de um pensamento complexo é, assim, ajustar as expectativas à própria natureza complexa da realidade, que é dinâmica, imprevisível e sem roteiro previamente estabelecido. E se, por um lado, o reconhecimento disso acrescenta um forte elemento de insegurança em todas as ações humanas, que podem ou não dar certo, por outro lado, permite uma grande liberdade no tratamento das coisas do mundo e uma ampla possibilidade de articulações de energias psíquicas e sociais criativas que, de outro modo, ou são desperdiçadas, na melhor das hipóteses, ou eclodem caoticamente, sem controle e com diversos graus de violência, de que temos notícia todos os dias pelos jornais impressos e televisivos, e pelas resvistas e internet, isso quando não estamos diretamente implicados nela como causadores ou como vítimas.

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  *Jeosafá Fernandez é Doutor em Letras pela USP e Pesqisador colaborador do Depto. de História da USP. Tem, entre seus mais de 50 títulos, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X e o ciclo de romances paulistanos Era uma vez no meu bairro (Zonas Norte, Sul, Leste e Oeste).

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