Uma das vozes mais poderosas contra os abusos dos militares, ela condena o revisionismo e se surpreende com a gestão de Bolsonaro
Há muitas maneiras de se contar uma verdade, e, para a história, faz-se necessário um método capaz de investigar o que permeou um momento, um conflito ou um período. A Comissão Nacional da Verdade, por exemplo, finalizada em 2014, foi a responsável por investigar crimes cometidos pela ditadura militar no Brasil, e não se baseou em achismos para fazê-lo. Foram mais de 6000 denúncias de tortura apuradas, e mais de 400 pessoas assassinadas pelo regime. Quem sobreviveu leva a história pessoal como parte integrante de um escopo, que recorta em pedaços 21 anos da história brasileira.
Amelinha Teles é uma dessas sobreviventes, assim como uma parte de sua família. Ela teve o marido e a irmã, grávida de 8 meses na época, também submetidos à tortura. Seus filhos, crianças de 4 e 5 anos de idade, viram os pais sob o terror que era submetido à oposição naquela época. Em 2008, a família Almeida Teles conseguiu fazer com que Carlos Alberto Brilhante Ustra, tão admirado por Bolsonaro, fosse o primeiro agente da ditadura a ser declarado torturador. Em entrevista a CartaCapital, Amelinha comenta sobre as homenagens ao aniversário do golpe e a relação do governo com o que aconteceu, de fato, na história.
CartaCapital: A senhora faz parte de um grupo de vítimas da ditadura que protocolou ações contra a decisão de Bolsonaro de homenagear o aniversário do golpe. O que essas ações representam, exatamente?
Amelinha Teles: A primeira proposta delas é defender o estado democrático de direito e a democracia, e o próprio corpo constitucional que não permite tortura e garante o direito à vida. A atitude irresponsável dele é também inconstitucional, então temos que fazer com que a lei seja cumprida.
Fomos direto com uma liminar no mandado de segurança. Temos direito a uma sociedade com liberdades políticas e de manifestação. A gente viu tudo isso sendo ameaçado na medida que ele faz uma convocação desse tipo, ignorando que houve uma ditadura que durou 21 anos que é reconhecida internacionalmente.
CC: Caso o presidente realmente faça alguma homenagem, vocês consideram possível alguma ação consistente contra ele no Congresso? O Ministério Público lembrou que celebrar o golpe pode ser considerado crime de responsabilidade.
AT: Não discutimos isso ainda. Só queremos que não haja comemoração. O fato histórico, do golpe militar fazer 55 anos, deve ser lembrado e reconstituído, inclusive nos quartéis, como forma de pensar que foram gravíssimas as violações de direitos humanos provocadas por esse golpe. O desdobramento disso foi a implantação de um Estado terrorista, em que opositores foram assassinados e sepultados, muitos não encontrados até hoje.
Estamos preocupados com uma pedagogia da verdade, que considera que a verdade deve ser trazida à tona para que outros setores da população tomem consciência história do que aconteceu. Essa não deve ser uma forma de governar o Brasil.
CC: Na sua opinião, Bolsonaro se fortalece ou se enfraquece com declaração de apoio à ditadura?
AT: É uma demonstração de fraqueza. Por mais que você questione o processo eleitoral, o resultado dele considerou o Estado de democracia. As pessoas que o escolheram como presidente fizeram em nome dessa democracia, assim como as que não o quiseram. Esse é o respeito da vontade popular.
Agora, ele precisa respeitar os próprios eleitores e considerar reconhecer que é presidente da República para todos. Com uma atitude dessa, ele perde força política e a autoridade que foi legitimada no voto. Os próprios militares estão com muito mais bom senso do que ele, porque viram que a declaração foi um absurdo.
CC: O Ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, declarou que refutava o termo “comemoração”, mas que a data precisa ser explicada aos mais jovens. Para a senhora, o que dizer aos mais jovens, afinal, sobre o que foi esse período?
AT: Temos que lembrar o fato histórico, e quão nefasto foi para o desenvolvimento do Brasil. Temos dívida, ainda, com aquele período. A ditadura acabou com altíssima inflação e desempregos, então ela foi desmoralizada por si mesma.
Lembrar do golpe é rememorar também de um tempo trágico que interrompeu vidas, sonhos, esperanças e realizações. Estamos com uma democracia fragilizada e ameaçada. Precisamos lembrar, sim, e não celebrar como feito heróico porque foi um feito vergonhoso. Não é com violência que vamos resolver os problemas históricos, mas sim com o diálogo, com a construção democrática e com respeito aos valores da justiça.
CC: A senhora poderia comentar sobre as ações do governo Bolsonaro em relação à Comissão da Verdade e aos anistiados? A Ministra Damares vem falando sobre uma “caixa preta” da Anistia.
AT: Não existe “caixa preta”. As pessoas que foram anistiadas recebem uma indenização do Estado, que tem uma dívida com elas porque torturou, impediu que elas estudassem e tivessem uma profissão regular. Muitas foram para exílios forçados e banidas de ficarem no Brasil. Outras foram viver na clandestinidade. Esse pagamento não é benefício.
Essa senhora ministra deve procurar conhecer a história, e lembrar que a anistia foi aprovada e editada ainda no período militar, no governo de João Figueiredo. Eu mesma fui anistiada nessa época, e nem todas as pessoas conseguiram porque a anistia não foi ampla, foi parcial – uma conquista em plena ditadura. Ela quer retroceder mais ainda, se o próprio regime reconheceu que tinha cometido tamanha violação dos direitos?
A Constituição de 1988 reconhece o direito às reparações para as vítimas, que devem ser feitas do ponto de vista econômico e político. A Dilma foi uma presa política, e foi torturada. Ela tem que ser anistiada porque está na lei. É uma questão resolvida. Essa ministra tem que resolver o que falta resolver.
CC: Acha que existe o perigo de um revisionismo histórico?
AT: Tem uma ameaça, antes mesmo desse governo, que é a linha do negacionismo e do revisionismo histórico, mas isso nunca conseguiu convencer. Não tem argumentos e não funciona na democracia, o que a história mostra claramente: a ditadura usou tamanha repressão, e mesmo assim caiu do poder por ela mesma.
Acho muito irresponsável colocar as coisas nesse nível. O Brasil já foi condenado pela Corte Internacional dos Direitos Humanos pela repressão contra a Guerrilha do Araguaia, e pelo caso do Herzog. Existe uma cultura e valores democráticos consolidados na humanidade, e por meio deles que se consegue ter um diálogo, e não com o uso da truculência. Esse governo está começando agora, e tem que pensar que tem pelo menos 4 anos pela frente. Será que não pensam nisso, não? A ditadura saiu derrotada. O governo vai seguir esse caminho também?
CC: A senhora foi perseguida por conta da sua aparição na campanha do candidato Fernando Haddad. Existe algum movimento remanescente contra a senhora depois da eleição?
AT: Eu fui ameaçada por ter denunciado, mais uma vez, que fui torturada. Meu depoimento foi de 30 segundos, e o que eu pensei foi: ‘eu não tenho direito de expressar minha dor?’ Não falei ofendendo nem condenando ninguém, não tenho esse poder. Só a Justiça tem.
Não há mais perseguição, foi tudo na época das eleições. Eles sabem que minha fala é verdadeira e ficaram com medo dela. Foi uma questão estrategicamente eleitoral. Agora, eles estão aí, sem saber o que fazer com o governo.
CC: E qual é sua avaliação da atuação do governo?
AT: Eu não vi nenhum ministro que tenha falado algo certo, ou que dê segurança ou esperança. Eles não escutam a sociedade. Precisam lembrar que governam o povo, e que não foram eleitos pela maioria. 89 milhões de pessoas não votaram neles – 47 milhões são votantes do Haddad, e os demais foram brancos e nulos.
Eu não lembro de ministros da ditadura falarem do jeito que eles falam. Não há nenhuma sintonia com a democracia, o que me deixa admirada: Jair Bolsonaro foi deputado por 27 anos, e nunca entendeu a Constituição? É um governo na contramão da história. Há uma insatisfação geral, pelo o que percebo. Até o Carnaval disse isso: a Mangueira trouxe um samba-enredo mostrando que temos que contar a história não contada. Isso não diz nada? Diz muita coisa. Mostra insatisfação e uma vontade de superar esse momento.
Fonte: CARTA CAPITAL
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